Não é exagero dizer que o Senhor Jesus fez muitas coisas surpreendentes em Seu ministério aqui na terra. Não me refiro agora aos sinais sobrenaturais, que testemunharam cabalmente da Sua origem divina, nem as palavras e conceitos que proferiu, demonstrando sobejamente a Sua profunda sabedoria, revelando a nós o Pai e penetrando em nossos pensamentos para corrigir falsos conceitos e nos apontar a perfeita justiça e a retidão: Ele também falava e agia de maneira invulgar, não obedecendo aos costumes religiosos e à praxe social da época em que vivia.
Ele escandalizou os da sinagoga da sua pátria com os seus ensinos (Mateus 13:57), os fariseus, ao dizer que ensinavam doutrinas que eram preceitos de homens (Mateus 15:7-12), e até os seus discípulos ao dizer "… a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida … quem de mim se alimenta também viverá por mim…" (João 6:53-61). Chegou até a ser repreendido por um deles, Pedro, por admitir que iria ser morto e ressuscitar ao terceiro dia.
Como rabino (mestre), permitia que os seus discípulos comessem sem primeiro passar pela cerimônia de lavar as mãos, manteve dialogo com uma mulher samaritana enquanto seus discípulos foram comprar alimentos, ordenou que trouxessem crianças diante dEle para que pusesse sobre elas as suas mãos e as abençoasse, tratava e curava doentes aos sábados, e muitas outras "excentricidades" numa sociedade que usava de uma ética estreita e rigorosa.
Mas a coisa que talvez tenha mais chocado os seus discípulos, novamente fazendo Pedro protestar com veemência, foi quando deixou a sua honra e dignidade de rabino, e anfitrião da importante refeição pascal, tirando as suas vestes exteriores e cingindo-se de uma toalha para lavar-lhes os pés.
Um homem poderia ser servo de outrem por causa de infortúnios na vida que o obrigassem a isso; poderia também ser um escravo voluntário que, diante da opção de ser liberto, resolvera permanecer para sempre com o seu senhor (Êxodo 21); mas seriam raríssimas ou mesmo desconhecidas as ocasiões em que um mestre se fizesse de serviçal aos seus discípulos, lavando-lhes os pés.
Segundo a etiqueta da sua sociedade, lavar os pés dos convidados era tarefa do mais vil entre os servos. Nem passaria pela cabeça de um discípulo lavar os pés do seu mestre. Mas agora o seu próprio querido Mestre estava se dispondo a lavar os seus pés.
O seu gesto se toma ainda mais significativo ao levarmos em conta que Ele estava sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus, e que ia para Deus (João 13:3), o que os seus discípulos não podiam compreender ainda. Isto é dito para percebermos toda a extensão do que Ele estava para fazer.
O nosso Salvador já havia se despido da Sua glória celestial para assumir o lugar de Servo e executar os planos divinos para nossa redenção dando a Sua vida na cruz. A hora estava agora próxima para que isso se cumprisse. Esta era a última páscoa, em que um cordeiro sem mancha era sacrificado e comido, figura da Sua própria pessoa.
O que Ele fez diante dos seus discípulos espantados era pouco em relação ao ter anteriormente deixado o lar celestial, mas ilustrou visivelmente para eles a sua grande humilhação, uma lição da qual nunca jamais se esqueceriam.
Ele não estava introduzindo um ritual, ou "sacramento" como pensam levianamente alguns, para ser exercido pomposamente uma vez por ano por clérigos de alta posição. Muitos julgam que se trata apenas de uma lição de humildade para mostrar que devemos servir uns aos outros, mas isso os seus discípulos podiam facilmente compreender; no entanto, quando Pedro protestou, Ele lhe disse que o que Ele fazia Pedro não sabia mas saberia depois. A lição que Ele deu é muito mais profunda do que isso.
Ele disse a Pedro "Se eu te não lavar, não tens parte comigo", ou seja, para ter comunhão com o Senhor Jesus era preciso que Ele lavasse os pés de Pedro (e dos Seus outros discípulos). 0 Senhor se dispôs a lavar, mas era necessário que os Seus discípulos estivessem dispostos a permitir que Ele o fizesse. Evidentemente era uma ilustração de uma realidade espiritual que se torna mais clara com a resposta que Ele deu a Pedro a seguir quando este então propôs que lhe lavasse também a cabeça e as mãos: "Aquele que está lavado não necessita de lavar senão os pés, pois no mais tudo esta limpo. Ora, vós estais limpos…".
Para compreendermos ainda melhor esta frase devemos saber que esse verbo "lavar" é a tradução de dois verbos diferentes no original grego: louo e nipto. 0 verbo louo se traduz melhor por banhar ficando nipto como lavar. Naqueles dias era costume ir aos banhos públicos - piscina - para tomar banho e ao voltar para casa, de sandálias, os pés ficavam sujos e precisavam ser lavados.
0 Senhor está ensinando que quando nos convertemos dos nossos pecados, cremos em Sua Palavra e 0 recebemos como nosso Senhor e Salvador, tornando-nos Seus discípulos, como que passamos por um banho, tornando-nos limpos do pecado: esta é a regeneração, o novo nascimento. "Se dissermos que temos comunhão com ele e andarmos em trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo pecado. " (1 João 1:6-7). Andamos na luz mediante a obediência à Sua palavra "Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra…" (Efésios 5:25,26).
Contudo, mesmo em nosso andar na luz, neste mundo nossos pés se sujam pelo caminho: é quase impossível andar sem nos contaminar pelo menos um pouquinho, e o Senhor Jesus nos diz que não podemos ter comunhão com Ele se não permitirmos que Ele nos lave. Ninguém a não ser Ele pode fazer isso, e apesar da posição sublime que Ele ocupa, Ele se dispõe a lavar os pés de cada um de nós.
Mas, como Pedro, às vezes achamos que não precisamos recorrer a Ele: alguém disse que uma das coisas mais difíceis no mundo é fazer com que um santo admita que é um pecador… Frieza, indiferença, falta de amor (em obras, não só palavras), arrogância, orgulho, são formas de pecado, tal como muitas outras atitudes, resultantes do nosso contato com o mundo onde predominam. Para que nossos pés sejam lavados é preciso primeiro admitirmos, ou confessarmos, os nossos pecados.
Confessar significa concordar com Deus que estamos em falta. "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (1 João 1:9). Se Ele não lavar os nossos pés, no dia a dia, perderemos a nossa comunhão com Ele. Temos a nossa salvação, que nunca nos será tirada, mas deixamos de gozar da Sua presença em nossa vida, e perderemos o gozo de servi-l0.
Mas também o gesto do Senhor Jesus é um exemplo para nós: "eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também'" - não é uma questão de repetir a ilustração, mas a de nos baixarmos para servir uns aos outros: "Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espirito de mansidão, olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém cuida ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo. " (Gálatas 6:1-3). Quando um irmão em Cristo suja os pés, caindo em pecado, ele deve ser trazido de volta à comunhão por aquele que se considera espiritual. Dar-lhe uma paulada e criticá-lo não é lavar os seus pés. Deve ser tratado com mansidão.
"… vós deveis também lavar os pés uns aos outros" (João 13:14)