Segundo o dicionário Aulete a palavra “mistério” no idioma português tem vários significados, como: tudo que não se pode explicar ou compreender; os sacramentos e dogmas papais impenetráveis à razão humana e que se impõem como artigos de fé; o conjunto de conhecimentos que permitem o domínio de uma arte, técnica ou ciência; culto religioso secreto do qual só os iniciados participam etc.
Nenhum deles transmite o sentido exato do musterion grego, que significa um segredo transmitido apenas para os iniciados, ou que é desconhecido até que seja revelado, seja ele fácil ou difícil de entender. A ideia da incompreensibilidade, se implícita, é puramente acidental. Para melhor entendimento vamos considerar brevemente o seu uso no paganismo antigo e depois examinar mais cuidadosamente o seu uso bíblico:
Nos livros clássicos existentes é encontrado apenas uma vez no singular, mas é frequentemente encontrado no plural ta musteria, "os mistérios", termo técnico para os ritos secretos e celebrações nas religiões antigas só conhecido e praticado pelos iniciados, como os Mistérios Órficos, associados com o nome de Dionísio. Além dos mistérios gregos, podemos mencionar os cultos egípcios de Isis e Serapis, e do mitraísmo persa, que no século 3 dC. foi amplamente difundido por todo o império romano. A seguir estão algumas de suas principais características:
Apelavam mais para as emoções do que para o intelecto.
Visavam garantir uma união mística com alguma divindade e uma imortalidade feliz.
Seus ritos se marcavam pelo simbolismo profuso de palavra e ação, precedidos por ritos de purificação pelos quais os praticantes tinham que passar.
Os cultos se cercavam de uma rigorosa exclusividade.
Os mistérios não eram sociedades secretas, mas estavam abertos a todos os que eram escolhidos para ser iniciados (exceto bárbaros e criminosos). Segundo Renan eles formavam a parte séria da religião pagã, não eram desprovidos de elementos nobres, mas também se prestavam a extravagâncias e abusos graves.
Não houve mistérios do tipo acima no culto a Deus. Todo o ritual da lei mosaica contava com a participação do povo em geral através dos seus representantes, os sacerdotes. Não havia qualquer sistema de iniciação cerimonial pelo qual poucos tinham privilégios negados à maioria, mas a tribo de Levi fornecia os mestres que ensinavam o povo, os que serviam no templo e os sacerdotes (que eram descendentes de Arão, também levita).
“As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre” (Deuteronômio 29:29); longe de exigir silêncio e segredo, elas deviam ser proclamadas abertamente (Deuteronômio 6:7). No entanto “O conselho do Senhor é para aqueles que O temem, e Ele lhes faz saber o seu pacto” (Salmo 25:14), ou seja, o Senhor reserva a Sua intimidade para os que têm a verdadeira piedade. A palavra grega “musterion” ocorre na Septuaginta do Velho Testamento apenas em Daniel, onde aparece várias vezes como a tradução do caldeu râz, um esconderijo ou segredo, referindo-se ao sonho do rei, o significado do qual foi revelado a Daniel (capítulo 2:18-19, 27-30, 47, 4:9).
A palavra musterion no singular e musteria no plural são encontradas 28 vezes. Em recente versão de Almeida a palavra é traduzida como “testemunho” em 1 Coríntios 2:1 e inexplicavelmente omitida em Apocalipse 17:5. Felizmente a Nova Versão Internacional corrigiu esses dois erros.
Podemos distinguir 10 mistérios diferentes no Novo Testamento:
Nos Evangelhos, foi usada pelo Senhor Jesus para informar aos Seus discípulos da razão por que falava ao povo em geral por parábolas: “E Ele lhes disse: A vós é confiado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se lhes diz por parábolas; para que vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam e sejam perdoados” (Marcos 4:11-12, também Mateus 13:11-13 e Lucas 8:10). Foi cumprimento da profecia em Isaías 13:14-15, que informa que isso seria feito por causa da impiedade do povo, e está em conformidade com o Salmo 25:14 citado acima. As parábolas escondem o seu significado daqueles que olham apenas para o sentido literal, mas é o meio de revelação para aqueles que têm a chave para a sua interpretação: “A vós é confiado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se lhes diz por parábolas” (Marcos 4:11). Esta é a única ocasião em que a palavra “mistério” é atribuída ao nosso Senhor.
O mesmo sentido se encontra em Apocalipse 1:20; 17:5,7 e provavelmente também em Efésios 5:32, onde o casamento é chamado de "um mistério", ou seja, um símbolo a ser interpretado alegoricamente de Cristo e Sua igreja.
O significado mais comum no Novo Testamento de “mistério” é aquele enfatizado pelo apóstolo Paulo, ou seja, de ser uma verdade divina escondida, mas que agora foi revelada nos evangelhos. Romanos 16:25 e 26 dizem resumidamente: “àquele que é poderoso para vos confirmar, segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério guardado em silêncio desde os tempos eternos, mas agora manifesto e, por meio das Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus, eterno, dado a conhecer a todas as nações para obediência da fé”. Este é o mistério da piedade que Deus manteve em segredo desde o princípio (1 Timóteo 3:16, Romanos 16:25), e é básico para a compreensão do plano de salvação de Deus para todos os pecadores mediante a simples fé na obra redentora de Jesus Cristo.
A inclusão dos gentios na igreja (Efésios 3:3-9). Dake nota que o fato que haveria salvação para os gentios não era mistério, pois a salvação da humanidade já fora prevista desde a antiguidade e os profetas também previram a sua salvação (Romanos 9:24-33, 10:19-21). O mistério oculto em Deus em todas as épocas passadas era que os gentios seriam salvos sem observar a lei, e que ambos judeus e gentios seriam liberados da lei, fazendo um só corpo, a igreja de Cristo (Efésios 1:22-23; 3:1-11; 4:11-16; 5:23-33; Colossenses 1:18,24), formado pelo Espírito Santo (1 Coríntios 12:12-13, 27:31), nos termos da nova aliança, em que todas as distinções de privilégio e bênção desaparecem (Efésios 2:14-15, 1 Coríntios 12:13, Gálatas 3:27-28; Colossenses 1:18-29; 3:10-11, Hebreus 11:10-16, 13:14; Apocalipse 21:9-10). Esta era a nova revelação (Efésios 3:1-9, Gálatas 1:12, 2:2, 3:13-14).
A primeira metade dos mistérios (até o quinto) não só foram revelados, mas também cumpridos até nossos dias. Os restantes serão cumpridos em breve dentro do calendário determinado por Deus desde os tempos eternos.
Concluindo, vemos que os mistérios da Bíblia são realidades antecipadamente conhecidas por Deus e reveladas na ocasião oportuna para a sabedoria da humanidade, em contraste com a sabedoria resultante da filosofia humana (veja especialmente 1 Coríntios 2.1-16 e compare com Mateus 11:25). O contraste não consiste em que a filosofia é humanamente compreensível enquanto os mistérios estão obscurecidos, mas que a filosofia é produto de pesquisa intelectual humana, enquanto os mistérios são revelação divina e se discernem espiritualmente.
A fé cristã não tem doutrinas secretas, pois seus mistérios são revelações feitas à humanidade por Deus pelo Seu Espírito em tempo oportuno de coisas que Ele, ciente de tudo, já sabia antecipadamente. Alguns não são compreendidos por todo o mundo, assim o “segredo” revelado a alguns parece estar sendo escondido de outros. As doutrinas de Cristo e do Seu Reino estão escondidas aos sábios, entendidos e príncipes do mundo (Mateus 11:25, 1 Coríntios 2:6-16), e de todos os que estão fora do Reino (Mateus 13:11-17), e há verdades espirituais mais profundas retidas até mesmo de cristãos, enquanto estiverem num estágio elementar de desenvolvimento (1 Coríntios 3:1-3, Hebreus 5:11-14). Por outro lado, há muitas passagens em que as verdades da revelação se dizem ser comunicadas livremente e sem reservas a todos (por exemplo: Mateus 10:27, 28:19-20, Atos 20:20,27, Efésios 3:9, Colossenses 1:28; 1 Timóteo 2:4). A explicação é que, se a comunicação é limitada, não é por causa de qualquer sigilo na mensagem do evangelho em si ou qualquer reserva por parte do comunicante, mas pela capacidade receptiva do ouvinte. No caso dos que têm uma obtusidade carnal de espírito, moral ou mundanismo isto os torna cegos para a luz que brilha sobre eles (2 Coríntios 4:2-4). No caso das "criancinhas em Cristo," a reserva aparente é devido apenas ao princípio pedagógico de adaptação do ensino para a receptividade progressiva do discípulo (João 16:12). A linguagem forte em Mateus 13:11-15 se deve ao modo hebraico de expressão através do qual um resultado real é indicado como se fosse intencional. Não há doutrina esotérica ou reserva intencional no Novo Testamento.