Parece-me que a prática da administração das igrejas locais, quando foi escrito o Novo Testamento, se assemelha em certos aspectos à administração do povo de Israel durante o tempo dos juizes. Estas eram algumas das características em Israel:
Depois da administração geral de Moisés e de Josué, cada tribo ficou com um chefe ou “príncipe” hereditário para dirigi-la, executar justiça e conduzi-la para a guerra, sendo eles auxiliados pelos chefes das famílias em decisões importantes.
Embora sem uma administração de cúpula sobre todo o povo, este tinha um Rei - o SENHOR presente no Seu “Palácio-Tabernáculo”. O sacerdote podia consultá-lo para o povo.
De tempos em tempos algumas tribos tornavam-se infiéis e desobedientes ao seu Rei invisível. Sua idolatria e pecado eram castigados com opressão pelos inimigos até que, reconhecendo a sua culpa, clamavam a Deus por socorro. Este então intervinha suscitando-lhes libertadores, ou juizes. Os juizes livravam essas tribos dos seus inimigos, destruíam a idolatria e promoviam o conhecimento de Deus. Este é o assunto principal do livro dos Juizes.
Finalmente o povo não quis mais se abrigar à sombra do seu Rei invisível. Essa falta de fé trágica o conduziu a desejar um rei como as nações ao seu redor. Isso Deus lhes concedeu, e o povo perdeu a liberdade que tinha (Juizes 21:25), sofrendo as conseqüências da debilidade de caráter e infidelidade da parte dos reis que se sucederam.
Analisando cuidadosamente o relato bíblico, concluímos que a nação em geral gozou de muito mais prosperidade do que adversidade durante o tempo dos juizes. Durante os 450 anos que durou, só houve opressão dos inimigos durante 111 anos, ou um quarto do período. Mesmo na maior parte desses 111 anos somente algumas tribos estiveram subjugadas a outros povos de cada vez. As opressões nem sempre foram muito severas, e todas as calamidades terminavam com a vitória e a glória do povo de Israel, logo que, arrependido, se voltasse e clamasse ao seu SENHOR. As tribos não tinham motivo para mudar a sua modalidade de governo, pois bastava que observassem as condições que o SENHOR lhes havia determinado para que todas prosperassem.
Como as tribos de Israel, cada igreja local tem a sua própria administração, submissa diretamente ao Senhor Jesus Cristo (Apocalipse 2 e 3), que em cada uma opera mediante o Espírito Santo. Cada igreja é disciplinada por Ele. Às vezes Ele manda “juizes” para advertir uma igreja das suas falhas e renovar o seu conhecimento de Deus; mediante o seu arrependimento, purificação e santificação a igreja local é reavivada. A história mostra como pouco depois do seu início, muitas igrejas “quiseram um rei” e passaram a se unir debaixo de um homem - o “bispo” ou “arcebispo” - ou uma cúpula eclesiástica. Os desastres se seguiram, culminando com a apostasia, pelas mesmas causas: debilidade de caráter e infidelidade ao Senhor desses “reis”.
As igrejas locais, não institucionalizadas, devem zelar pela sua independência a fim de não caírem no mesmo erro. O mundo diz “a união faz a força”, mas a nossa força vem de Deus: é Ele quem nos fortalece (Col. 1:10,11; 1 Pedro 5:10). Paulo disse “tudo posso naquele que me fortalece” (Fil. 4:13). Elas devem, sobretudo, fugir à tentação de se unirem debaixo de um “rei”, que seria o caso de uma institucionalização.
Assumir um nome em comum que as distinga das demais igrejas cristãs seria o primeiro passo no caminho da institucionalização. Qualquer união com total preservação da independência dos participantes é uma impossibilidade, pelo menos do ponto de vista humano.
Também não vejo como duas ou mais igrejas em locais diferentes poderiam se unir administrativamente, pois cada igreja local responde diretamente a Cristo, que tem em suas mãos a direção de cada uma.
Espiritualmente, no entanto, é desejo do nosso Senhor que todos os que pertencemos a Ele sejamos “um” (João 17:11), bem como os crentes judeus e gentios, como Ele e o Pai são “um” (João 17:20-23). Portanto, a unidade espiritual é um imperativo divino, tanto individualmente como coletivamente, unidade do tipo que havia no povo de Israel na época dos juizes, quando tinham um só Deus, um sumo-sacerdote, um tabernáculo.
Essa unidade está bem expressa em Efésios 4:3-7: “… esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Há somente um corpo e um Espírito, com também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos. E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo.”
Embora haja o individualismo e independência administrativa de cada igreja, cada congregação local é parte integrante da igreja de Deus e deve esforçar-se para preservar essa “unidade do Espírito no vínculo da paz” com as outras.
Assim como algumas tribos israelitas às vezes se uniam no combate ao inimigo comum, a colaboração entre as igrejas é altamente desejável. As igrejas primitivas colaboravam com ofertas (1 Coríntios 16:1-3, etc.) e obreiros (Paulo, Tito, Timóteo, Epafrodito, etc.). As igrejas de hoje podem igualmente juntar esforços para alcançar determinados objetivos sem que haja uma união administrativa das próprias igrejas. Elas não precisam sacrificar sua individualidade e autonomia para isso.
Em 2003 houve um congresso em Buenos Aires, ao qual compareceram muitos irmãos, vindos de vários países, e ao qual foram também algumas dezenas de brasileiros. Animados com a comunhão, a reafirmação de princípios e os estudos sobre a estratégia de evangelização, que eram os objetivos do congresso, alguns voltaram convencidos que é necessário haver mais integração das igrejas nas áreas de evangelismo e ensino. Essas, e muitas outras atividades na obra de Deus, podem ser desenvolvidas melhor quando os recursos materiais e humanos são compartilhados, bem como custeados, por várias igrejas ao invés de uma só. Como exemplos, podemos mencionar o ensino bíblico sistemático, a literatura (folhetos, hinários, revistas), o recolhimento e a distribuição de ofertas, o evangelismo de crianças nas escolas públicas, etc.
Essas atividades devem ser desempenhadas por pessoas ou entidades escolhidas pelas igrejas para essa finalidade. Na maioria das vezes, uma pessoa jurídica é formada, para fins legais e administrativos. Muitas já existem. Da mesma forma que as igrejas locais, deve-se evitar com todo o cuidado dar uma denominação restritiva a tais entidades, como se pertencessem a alguma instituição eclesiástica ou grupo cristão em particular. Por exemplo, se fôssemos chamar uma impressora de “Impressora das Igrejas dos Irmãos” ou coisa semelhante, seria sectarismo e exclusivismo aos olhos dos nossos irmãos que pertencem às igrejas denominacionais e mesmo dos descrentes. Somos todos irmãos, na fé, em Cristo, tanto os verdadeiros crentes das igrejas independentes como os das denominacionais.
Pertencemos à igreja (ou congregação, assembléia) de Deus e de Cristo. Que isto seja evidente pela nossa conduta e expressão, sem procurar nos identificar a nós próprios, ou aos nossos trabalhos em conjunto, mediante algum nome que nos torne, efetivamente, em ainda outra “denominação”.
Preciso, porém, soar o alarme para um sério perigo muito presente em nossos dias: o do “gigantismo”. Quando as atividades que as igrejas desejam desenvolver juntas forem todas executadas por uma só entidade, esta tenderá a se tornar bem visível e poderosa, absorvendo recursos financeiros e humanos das igrejas que se associaram para a sua criação. Por estar dotada de maiores recursos desse tipo, as igrejas se apoiarão cada vez mais nela, vindo a depender dela que, teóricamente, existe para serví-las. Quando o servo é maior do que o seu senhor, inevitavelmente a relação entre eles se inverte! Dificilmente uma igreja local terá coragem de desligar-se dessa entidade de quem tanto depende, para voltar a depender inteiramente do seu Senhor como antes. Ela estará institucionalizada. Leiam 1 Samuel 8:11-20, e vejam a clareza da sua aplicação nestas circunstâncias.