Com a permissão do comandante das tropas romanas em Jerusalém, Paulo fez um discurso do patamar da fortaleza próxima ao templo ao povo que queria linchá-lo.
Usando o mesmo idioma que Estêvão havia usado quando se defendia diante do sinédrio (cap. 7:2), Paulo, que estivera presente, começou a sua defesa contra as acusações dos judeus. Estas eram as mesmas que haviam sido feito contra Estêvão, ou seja, que era um renegado da lei mosaica e que fizera coisas que, segundo alegavam, profanavam o templo.
Dirigiu-se à multidão com cortesia e dignidade, tratando o povo, entre os quais estavam os seus líderes religiosos e civis do povo, como seus irmãos judeus. O propósito de Paulo era conciliatório, usando sua hábil diplomacia.
Suas primeiras palavras, “ouvi a minha defesa, que eu agora faço perante vós” literalmente se traduz como “minha defesa para vocês neste momento”.
Quando o povo o ouviu falando em seu próprio idioma, fez-se ainda maior silêncio. Eles teriam entendido o grego que se falava correntemente, mas preferiam o aramaico (semelhante ao antigo hebraico) que Paulo sabiamente usou para falar com eles.
Iniciou a sua defesa declarando os fatos reais que o levaram a aceitar Jesus como sendo o Messias e a obedecê-lo. A força do seu argumento está na experiência pessoal destes fatos, aos quais agora podia testemunhar.
Ele informa a sua identidade: judeu, com as vantagens e privilégios do seu povo, nascido em Tarso, tendo tido uma educação religiosa junto ao maior mestre rabino daqueles dias, Gamaliel, em Jerusalém. Assim ele fora instruído “conforme a precisão da lei de nossos pais”, habilitando-o a demonstrar claramente pelo Velho Testamento o cumprimento da lei e das profecias por Jesus Cristo, e a ser o grande ensinador que foi.
Disse ao povo que era “zeloso para com Deus”, assim como eram todos eles até aquele dia. Foi uma lisonja generosa a estes fanáticos que queriam matá-lo por causa do zelo mal-enganado que tinham, sem o saber.
Assim como acontecia com eles, o seu zelo levou-o a perseguir “este Caminho” até a morte, algemando e aprisionando homens e mulheres. Lucas usa a mesma palavra “Caminho” para a fé dos cristãos de Damasco (cap. 9:2). Aqui Paulo decerto usa essa palavra para evitar irritar o povo com uma denominação como “igreja de Cristo”.
Paulo invocou o testemunho do sumo sacerdote e do todo o conselho dos anciãos, para o fato que lhe deram cartas dirigidas aos “irmãos” de Damasco (os judeus dali), fazendo a sua apresentação autorizando-o a prender e trazer para julgamento em Jerusalém os do Caminho que ali se encontrassem. Já se haviam passado uns 20 anos, mas provavelmente havia alguns ainda vivos e presentes entre o povo.
Na verdade Paulo se envergonhava deste fato e estava se lembrando dele quando escreveu a Timóteo, dizendo que tinha sido um blasfemador, perseguidor e injuriador, o principal dos pecadores (1 Timóteo 1:13, 15). Mas agora demonstrava ao povo fanático até que ponto ele havia participado do seu zelo do judaísmo.
Em seguida ele relatou a sua notável experiência no caminho, quando viu ao redor dele uma grande luz, em pleno meio-dia (demonstra a intensidade dessa luz), que o cegou, e foi repreendido pelo próprio “Jesus o nazareno”. Rendeu-se a Ele naquele momento, sabendo agora que era o Senhor.
Finalmente conta como, através de Ananias, “um varão piedoso conforme a lei, que tinha bom testemunho de todos os judeus que ali moravam”, foi designado pelo Deus de seus pais a ser testemunha do “Justo” a todos os homens que havia visto e ouvido: a turba estava agindo contra Deus!
Foi batizado por Ananias: este era o batismo cristão que simboliza a morte para o pecado e a ressurreição para a vida em Cristo, assim lavando os pecados, o que já havia ocorrido na realidade com Paulo. O versículo 22:16 seria traduzido mais corretamente como: “Agora que te ergueste, sê batizado e invoca o Seu nome para que sejam lavados os teus pecados” (ver Joel 2:32; Atos 2:21; Romanos 10:13).
Quando orava no templo, de volta a Jerusalém (na sua primeira visita depois da sua conversão – cap. 9:29), em êxtase ele recebeu a ordem do Senhor, a quem podia ver, para apressar-se e sair de Jerusalém. Esta ordem deve ter surpreendido Paulo, pois o povo não teria razão para duvidar da sua experiência, dado o seu zelo anterior em perseguir os seguidores de Jesus Cristo. Sem necessidade, ele lembrou ao Senhor que o povo de Jerusalém sabia muito bem como ele havia perseguido os que criam n’Ele e que estivera presente por ocasião da morte de Estêvão.
Paulo julgava que o povo ia acreditar na sua mensagem por causa do zelo que havia mostrado anteriormente. Ele não gostava da idéia de sair correndo para salvar a própria vida, no lugar mesmo em que assistira à morte de Estêvão. O Senhor porém sabia que, em Jerusalém, o povo não receberia o testemunho de Paulo a respeito d’Ele.
Mas o Senhor conhecia aquele povo melhor do que Paulo, e era preciso que Paulo estivesse livre para desenvolver o trabalho a que fora chamado. Portanto o Senhor repetiu, em parte, as instruções que dera anos antes a ele através de Ananias (cap. 9:15).
Até aqui o povo se manteve atento ao que Paulo dizia. Mas quando Paulo citou a ordem do Senhor: ”vai, porque eu te enviarei para longe, aos gentios” o povo se encheu de ciúmes e ódio recomeçou a agitação aos gritos de “tira do mundo tal homem, porque não convém que viva”. Gritando, tirando as suas capas e lançando poeira para o ar, o povo fez com que o comandante ordenasse que Paulo fosse levado para a fortaleza.
Cláudio Lísias continuava ainda sem saber o motivo daquela arruaça, tendo Paulo feito o seu discurso em aramaico ao invés do latim e do grego que ele conhecia, portanto ordenou que Paulo fosse açoitado e interrogado para descobrir o motivo. O açoite era uma tortura comum naqueles dias para forçar os presos a responder as perguntas que lhes eram feitas.
A lei romana proibia que uma investigação criminal se iniciasse com tortura (inquisição). Embora os romanos não cuidassem muito dos direitos dos povos subjugados, as leis romanas estavam sujeitas a sanções severas no que dizia respeito ao relacionamento dos romanos entre si. Paulo era cidadão romano e estava bem cônscio dos seus direitos.
O centurião foi imediatamente até o comandante Lísias e o advertiu a acautelar-se porque “este homem é romano”. Ouvindo isto, o comandante foi depressa até onde Paulo estava amarrado e perguntou se ele era romano. Quando Paulo confirmou que sim, o comandante declarou que ele próprio havia adquirido a cidadania romana por grande soma de dinheiro. A julgar pelo seu sobrenome, é provável que fosse grego de nascimento. Os imperadores romanos se enriqueciam ao vender a cidadania romana às pessoas mais abastadas dos povos conquistados.
Se Paulo tivesse também comprado a sua cidadania, o centurião saberia que era homem de recursos, e podia ser explorado. Mas Paulo esclareceu que era cidadão de nascimento. Há uma dignidade tranqüila e simples nesta resposta e até mesmo um perdoável orgulho. Alguns comentaristas dizem que os que eram nascidos em Tarso, como Paulo, adquiriam o direito da cidadania romana por decreto imperial.
Outros discordam, e deduzem que um dos seus antepassados, talvez seu avô, recebeu a cidadania romana para si e para os seus descendentes como recompensa por algum serviço especial aos romanos. A família de Paulo tinha uma boa posição social, ele recebeu uma educação das melhores, cedo foi autorizado a levar tropas para prender os cristãos de Damasco. Aprisionado, ele foi tratado como uma pessoa importante pelo governador Felix e seu sucessor Festo, o rei Agripa e o centurião Júlio.
Tendo esta resposta, os que o iam interrogar afastaram-se imediatamente e Cláudio Lísias ficou atemorizado por tê-lo amarrado.
O comandante ainda estava ansioso para descobrir o motivo do ódio do povo contra Paulo, e logo no dia seguinte mandou que se reunissem os principais sacerdotes e todo o sinédrio, libertou Paulo da prisão e levou-o para ter um confronto com eles.
1 Irmãos e pais, ouvi a minha defesa, que agora faço perante vós.
2 Ora, quando ouviram que lhes falava em língua hebraica, guardaram ainda maior silêncio. E ele prosseguiu.
3 Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criado nesta cidade, instruído aos pés de Gamaliel, conforme a precisão da lei de nossos pais, sendo zeloso para com Deus, assim como o sois todos vós no dia de hoje.
4 E persegui este Caminho até a morte, algemando e metendo em prisões tanto a homens como a mulheres,
5 do que também o sumo sacerdote me é testemunha, e assim todo o conselho dos anciãos; e, tendo recebido destes cartas para os irmãos, seguia para Damasco, com o fim de trazer algemados a Jerusalém aqueles que ali estivessem, para que fossem castigados.
6 Aconteceu, porém, que, quando caminhava e ia chegando perto de Damasco, pelo meio-dia, de repente, do céu brilhou-me ao redor uma grande luz.
7 Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?
8 Eu respondi: Quem és tu, Senhor? Disse-me: Eu sou Jesus, o nazareno, a quem tu persegues.
9 E os que estavam comigo viram, em verdade, a luz, mas não entenderam a voz daquele que falava comigo.
10 Então disse eu: Senhor que farei? E o Senhor me disse: Levanta-te, e vai a Damasco, onde se te dirá tudo o que te é ordenado fazer.
11 Como eu nada visse por causa do esplendor daquela luz, guiado pela mão dos que estavam comigo cheguei a Damasco.
12 um certo Ananias, varão piedoso conforme a lei, que tinha bom testemunho de todos os judeus que ali moravam,
13 vindo ter comigo, de pé ao meu lado, disse-me: Saulo, irmão, recobra a vista. Naquela mesma hora, recobrando a vista, eu o vi.
14 Disse ele: O Deus de nossos pais de antemão te designou para conhecer a sua vontade, ver o Justo, e ouvir a voz da sua boca.
15 Porque hás de ser sua testemunha para com todos os homens do que tens visto e ouvido.
16 Agora por que te demoras? Levanta-te, batiza-te e lava os teus pecados, invocando o seu nome.
17 Aconteceu que, tendo eu voltado para Jerusalém, enquanto orava no templo, achei-me em êxtase,
18 e vi aquele que me dizia: Apressa-te e sai logo de Jerusalém; porque não receberão o teu testemunho acerca de mim.
19 Disse eu: Senhor, eles bem sabem que eu encarcerava e açoitava pelas sinagogas os que criam em ti,
20 e quando se derramava o sangue de Estêvão, tua testemunha, eu também estava presente, consentindo na sua morte e guardando as capas dos que o matavam.
21 Disse-me ele: Vai, porque eu te enviarei para longe aos gentios.
22 Ora, escutavam-no até esta palavra, mas então levantaram a voz, dizendo: Tira do mundo tal homem, porque não convém que viva.
23 Gritando eles e arrojando de si as capas e lançando pó para o ar,
24 o comandante mandou que levassem Paulo para dentro da fortaleza, ordenando que fosse interrogado debaixo de açoites, para saber por que causa assim clamavam contra ele.
25 Quando o haviam atado com as correias, disse Paulo ao centurião que ali estava: É-vos lícito açoitar um cidadão romano, sem ser ele condenado?
26 Ouvindo isto, foi o centurião ter com o comandante e o avisou, dizendo: Vê o que estás para fazer, pois este homem é romano.
27 Vindo o comandante, perguntou-lhe: Dize-me: és tu romano? Respondeu ele: Sou.
28 Tornou o comandante: Eu por grande soma de dinheiro adquiri este direito de cidadão. Paulo disse: Mas eu o sou de nascimento.
29 Imediatamente, pois se apartaram dele aqueles que o iam interrogar; e até o comandante, tendo sabido que Paulo era romano, atemorizou-se porque o havia ligado.
30 No dia seguinte, querendo saber ao certo a causa por que ele era acusado pelos judeus, soltou-o das prisões, e mandou que se reunissem os principais sacerdotes e todo o sinédrio; e, trazendo Paulo, apresentou-o diante deles.
Atos capítulo 22, vers. 1 a 30