A natureza humana, egocêntrica, insiste que justiça seja feita para si próprio, especialmente no que diz respeito à satisfação de ofensas e ao pagamento de dívidas nos casos em que ele é o ofendido ou o credor.
O ser humano é também naturalmente vingativo quando não consegue a satisfação desejada para as ofensas de que se considera vítima ou créditos que lhe são devidos.
A pergunta de Pedro surgiu como conseqüência do ensino anterior sobre o julgamento entre irmãos, onde um, sentindo-se ofendido, deve procurar o ofensor para que se restabeleça a paz entre eles. Implícito está o amor e o perdão para que se atinja essa finalidade.
Mas as ofensas, ou as dívidas, podem ser repetidas, e Pedro quis saber se existia um limite. Havia um princípio entre os judeus segundo o qual era razoável perdoar até três vezes. Pedro, querendo ser generoso para estar em sintonia com os ensinos do Senhor, sugeriu o número perfeito: sete, ou seja, mais do que o dobro. Ele estava usando esse número literalmente.
A resposta do Senhor Jesus foi notável, pois está em consonância com Gênesis 4:24: "Sete vezes se tomará vingança de Caim; de Lameque, porém, setenta vezes sete". Deus, em Sua perfeita justiça, castiga o pecado de forma exemplar. Assim também o pecador, sujeito a essa pena da justiça divina, deve praticar abundância de perdão porque somente os misericordiosos alcançarão misericórdia (capítulo 5:7 e 6:14,15).
A quantidade, setenta vezes sete ou quatrocentos e noventa, é muito grande, e é quase impossível de atingir durante uma vida de relacionamento entre duas pessoas. É óbvio que ninguém vai guardar a conta, e é praticamente o mesmo que dizer "sempre". Assim como a misericórdia de Deus é infinita, a dos seus filhos também deve ser.
O Senhor Jesus ilustrou a situação mediante uma parábola. É importante lembrar que, em Suas parábolas, Ele sempre transmite um ensino central. Fora dele, não é certo procurar interpretar outras circunstâncias na parábola como tendo também aplicação prática.
Em um acerto de contas foi apurado que o servo de um rei lhe devia dez mil talentos: uma fortuna correspondente ao valor de cerca de trinta quilos de ouro. O servo não tinha com que pagá-la. Assim também, no reino de Deus, Ele irá um dia acertar contas com todos os seus servos. Nenhum terá como pagar pela sua dívida em pecados.
Para ressarcir-se, o rei mandou vender o servo e tudo o que ele possuía, direito soberano que tinha. O pecador também está sob condenação pelo seu pecado, sujeito à perdição eterna.
O servo prostrou-se reverente diante do rei, e rogou por paciência porque tudo lhe pagaria. Aqui vemos a humildade do pecador, reconhecendo seu pecado e desejoso de pagar por ele - infelizmente está fora do seu alcance, pois as boas obras nunca vão poder compensar o pecado.
O rei, misericordioso, compadeceu-se, mandou-o embora e perdoou a sua dívida, ou seja, assumiu o prejuízo ele próprio. Isso é mais do que justiça, é graça. Deus também é compassivo e assumiu o pecado do pecador que se humilha, reconhece o seu pecado e pede perdão. Isso Ele fez na pessoa do Seu Filho, que pagou por ele quando deu a sua vida na cruz do Calvário. Esse é o Evangelho da salvação, combinação de justiça, amor, compaixão e graça de Deus.
Mas esse servo não era misericordioso, uma característica indispensável aos que recebem a misericórdia de Deus. Provou isso logo em seguida, ao recusar perdoar um colega que lhe devia uma insignificância. Ele exigiu tudo que lhe era devido, sob as penas da lei, não ouvindo seu apelos por clemência.
O Senhor ressaltou a maldade desse servo, pois agarrava e sufocava o colega que lhe devia. Pela sua atitude, vemos que, no caso do pecador, ele não havia se convertido e continuava em seu pecado. Ele não havia nascido de novo pelo Espírito Santo.
Os outros colegas, vendo o que se havia passado, foram contar ao rei. Este chamou novamente o seu servo, declarou que ele era malvado por não ter se compadecido do colega assim como o rei havia se compadecido dele, e entregou-o aos verdugos para que não o soltassem até que pagasse toda a dívida.
A parábola nos ensina que quem não perdoar aos seus semelhantes, também não receberá perdão da parte de Deus. Tiago nos diz: "O juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia" (cap. 2:13).
Acrescentando o ensino desta parábola ao ensino sobre o julgamento entre irmãos, que deu origem à pergunta de Pedro, chegamos às seguintes conclusões:
Se um irmão nos ofender, devemos perdoá-lo imediatamente: "sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo" (Efésios 4:32). Esse perdão deve ser do íntimo (v.35). Com isso ficamos livres de um espírito vingativo, maldoso, e deixamos toda a responsabilidade sobre os ombros daquele irmão.
Tendo perdoado em nosso íntimo, não o declaramos ao irmão faltoso de pronto, pois não seria justo conceder perdão publicamente enquanto ele não se mostrar arrependido. Somos, então, obrigados a ir até ele e repreendê-lo em amor, esperando conduzi-lo ao arrependimento (Lucas 17:3).
Logo após ele pedir desculpas e reconhecer o seu pecado, podemos declarar a ele que está perdoado (Lucas 17:4).
Por outro lado, se não o perdoarmos, Deus nos punirá e nos disciplinará neste mundo e nosso galardão será prejudicado quando nossas ações forem julgadas diante do tribunal de Cristo.
21 Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?
22 Jesus lhe disse: Não te digo que até sete; mas, até setenta vezes sete.
23 Por isso o reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis fazer contas com os seus servos;
24 E, começando a fazer contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos;
25 E, não tendo ele com que pagar, o seu senhor mandou que ele, e sua mulher e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto tinha, para que a dívida se lhe pagasse.
26 Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso para comigo, e tudo te pagarei.
27 Então o senhor daquele servo, movido de íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe a dívida.
28 Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos, que lhe devia cem dinheiros, e, lançando mão dele, sufocava-o, dizendo: Paga-me o que me deves.
29 Então o seu companheiro, prostrando-se a seus pés, rogava-lhe, dizendo: Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei.
30 Ele, porém, não quis, antes foi encerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida.
31 Vendo, pois, os seus conservos o que acontecia, contristaram-se muito, e foram declarar ao seu senhor tudo o que se passara.
32 Então o seu senhor, chamando-o à sua presença, disse-lhe: Servo malvado, perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste.
33 Não devias tu, igualmente, ter compaixão do teu companheiro, como eu também tive misericórdia de ti?
34 E, indignado, o seu senhor o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que devia.
35 Assim vos fará, também, meu Pai celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas.
Mateus capítulo 18, vers. 21 a 35