Este capítulo trata da primeira parte da viagem de Paulo a Roma, sob a guarda de um centurião chamado Júlio e seus soldados, junto com outros presos, e acompanhado por Lucas e Aristarco.
Temos aqui uma minúcia de detalhes náuticos. Estes esclarecem a navegação da época tanto que até já serviram como base para um livro clássico sobre esse assunto, embora Lucas não fosse marinheiro.
O navio em que embarcaram em Cesareia, vindo de Adramítio na Mísia, seguia o litoral para o norte até Mirra na Lícia, onde teriam que embarcar noutro que fosse até a Itália.
O centurião permitiu que Paulo desembarcasse na escala feita em Sidom para ver e receber os cuidados dos seus amigos. Pertencia à distinta legião augusta, e era de bom caráter como outros centuriões mencionados no Novo Testamento, tendo mostrado bondade, justiça e respeito pelas pessoas.
Ao seguir viagem, encontraram ventos contrários e tiveram que voltear pelo norte da ilha de Chipre. Chegando a Mirra, ancoraram, o centurião logo achou um navio que viera de Alexandria com destino à Itália, nele acomodou os soldados, os prisioneiros incluindo Paulo, e os seus dois acompanhantes, e seguiram viagem.
Navegaram vagarosamente por causa dos ventos contrários (do noroeste) e depois de muitos dias tiveram que virar para sudoeste, eventualmente rodeando com dificuldade a ilha de Creta pelo sul. Pararam em Bons Portos, perto da cidade de Laseia no centro da ilha.
Devido ao longo tempo já decorrido, já era agora início do outono. Havia “passado o jejum”, que era o grande dia da expiação dos judeus e se celebrava no fim de setembro no nosso calendário. Naquele tempo consideravam perigosa a navegação pelo Mediterrâneo desde o princípio de outubro até meados de março.
Em condições normais de tempo, já teriam chegado ao seu destino em Roma, mas devido ao vento haviam percorrido apenas cerca de um terço da distância no seu veleiro. Paulo advertiu a tripulação e insistia que, se continuassem a viagem agora, estariam correndo grande risco de avaria para o navio, danos para a carga e mesmo perigo de vida para todos.
É curioso que um preso como Paulo se aventurasse a dar conselhos insistentemente aos marinheiros em assunto que não era da sua alçada. Evidentemente era respeitado pelo centurião e pelos oficiais e sentiu-se na obrigação de dar essa advertência, que ao que parece não lhe fora solicitada. Já havia sofrido três naufrágios antes (2 Coríntios 11:25).
Mas o centurião, que era a maior autoridade ali, preferiu confiar no piloto e no dono (ou capitão) do navio, e descartou a prevenção de Paulo. O lugar onde estavam não era próprio para invernar, e os outros achavam que seria melhor sair e continuar viagem pelo litoral até um porto mais adequado chamado Fenice, sessenta quilômetros adiante, que dava para o sudeste e o noroeste.
Começou a soprar um vento suave do sul e os marinheiros pensaram que era o que desejavam. Levantaram âncoras e se fizeram ao mar, acompanhando o litoral. Tão confiantes estavam, que nem se deram ao trabalho de levantar a bordo o barco salva-vidas que o navio rebocava, por ser pequena a distância.
Todavia, não demorou muito até que se desencadeasse da ilha um tufão muito forte do leste nordeste, que arrastou o navio. Não podendo navegá-lo contra o vento, desistiram das manobras e ficaram à deriva, passando ao sul de uma pequena ilha chamada Clauda e foram levados para o alto mar em direção ao oeste.
A muito custo recolheram o barco salva-vidas, usaram de todos os meios para reforçar o navio com cordas, baixaram as velas para não encalhar nos bancos de areia por ali, e se deixaram levar.
A carga do navio era provavelmente composta de trigo e outros cereais. O movimento brusco e violento por causa das ondas fazia com que essa carga fosse lançada de um lado para o outro, danificando o navio e provocando perigosa inclinação sobre o mar.
Portanto, no dia seguinte, jogaram parte da carga no mar. No terceiro dia, jogaram também a mobília e os equipamentos dispensáveis. Por muitos dias continuaram assim ao sabor da grande tempestade, sem ver a luz do sol ou das estrelas com que poderiam se orientar, e começaram a se desesperar, julgando que todos iam morrer. Os homens perderam todo o seu apetite e não cuidavam de se alimentar, embora não faltasse comida. Sem dúvida o enjoo de mar, o esgotamento físico devido ao esforço que faziam e o desespero, todos contribuíram para esse jejum.
Finalmente um anjo de Deus apareceu de noite a Paulo dizendo que não tivesse medo, e que era preciso que comparecesse diante de César; Deus, portanto, em sua graça, lhe concedera a vida de todos os que estavam navegando com ele.
Diante dessa mensagem alvissareira, Paulo levantou-se solenemente no meio daqueles homens e fez um pequeno discurso. Primeiro mencionou respeitosamente que haviam feito mal em não aceitar o seu conselho para não sair de Creta, pois teriam evitado o dano e o prejuízo que sofriam agora.
Mas que tivessem coragem porque nenhuma vida entre eles se perderia, apenas o navio. Revelou então o que o anjo do Deus a quem pertencia e adorava lhe dissera, e assegurou que ele cria em Deus que o que lhe fora dito ia acontecer. Era necessário agora que fossem dar em alguma ilha.
De fato, na décima quarta noite, quando continuavam a ser impelidos pela tempestade no mar Adriático, os marinheiros perceberam que a profundidade do mar se reduzia, começando com 37 metros, depois 27. Imediatamente lançaram âncoras da popa com medo que colidisse em rochedos e fosse afundado. Normalmente as âncoras são lançadas da proa, mas com o navio seguro pela popa, a proa atingiria a praia ou rochedos primeiro, dando mais segurança aos que estavam a bordo.
Desejavam, ansiosos, que viesse logo a alvorada mas, não obstante, os marinheiros começaram a desatar o barco salva-vidas com a intenção de fugir nele às escondidas. Paulo viu e alertou o centurião e os soldados, prevenindo que sem os marinheiros os demais não poderiam se salvar. Os soldados, então, cortaram as cordas que prendiam o barco e o deixaram cair.
Enquanto amanhecia, Paulo implorou a todos que comessem, pois tinham passado duas semanas em jejum e a sua segurança estava em jogo. Assegurou-lhes que todos sairiam ilesos. Em seguida, dando-lhes seu exemplo, tomou o pão, deu graças a Deus na presença de todos, partiu-o e começou a comer. Todos então se animaram e comeram também: eram 276 pessoas ao todo.
Para aliviar o navio, atiraram todo o trigo restante no navio ao mar. Ao amanhecer, não sabiam onde estavam mas viram uma praia. Levantaram as âncoras, içaram a vela de proa e, soltando o leme, deixaram que o vento os levasse para lá.
Mas, no caminho, o navio encalhou num lugar onde se encontravam duas correntes, a proa ficou presa e a popa começou a se desfazer com a força das ondas. Os soldados se dispunham matar os presos para que nenhum fugisse: eram responsáveis por eles e teriam que pagar com a própria vida se escapassem.
Mas o centurião impediu que o fizessem mandando que os que pudessem nadar fossem os primeiros a se lançar ao mar e alcançar a terra. Os demais que se salvassem usando tábuas e destroços do navio. Assim todos chegaram à terra, salvos.
Em resumo, vemos que Paulo e os seus companheiros estavam subjugados, em primeira instância, à vontade do centurião. Este tinha o dever de levar Paulo a Roma para que fosse julgado por César, e usou o transporte mais conveniente que conhecia, o marítimo.
Mas a viagem foi difícil, por causa da intempérie, e quase se detiveram por meses na ilha de Creta, mas a tempestade os levou para alto mar e foram, à deriva, exatamente na direção do seu destino, sem o saber, desembarcando agora numa ilha.
Paulo interveio três vezes: na primeira procurou deter o navio em Creta, temendo pela segurança de todos. Na segunda, tendo recebido uma mensagem divina, encorajou a todos e fez com que se alimentassem. Na terceira, impediu que os marinheiros fugissem, arriscando a vida dos que ficassem. O seu cuidado pelos outros foi um belo testemunho da sua fé.
1 E, como se determinou que navegássemos para a Itália, entregaram Paulo e alguns outros presos a um centurião por nome Júlio, da coorte augusta.
2 E, embarcando em um navio de Adramítio, que estava prestes a navegar em demanda dos portos pela costa da Ásia, fizemo-nos ao mar, estando conosco Aristarco, macedônio de Tessalônica.
3 No dia seguinte chegamos a Sidom, e Júlio, tratando Paulo com bondade, permitiu-lhe ir ver os amigos e receber deles os cuidados necessários.
4 Partindo dali, fomos navegando a sotavento de Chipre, porque os ventos eram contrários.
5 Tendo atravessado o mar ao longo da Cilícia e Panfília, chegamos a Mirra, na Lícia.
6 Ali o centurião achou um navio de Alexandria que navegava para a Itália, e nos fez embarcar nele.
7 Navegando vagarosamente por muitos dias, e havendo chegado com dificuldade defronte de Cnido, não nos permitindo o vento ir mais adiante, navegamos a sotavento de Creta, à altura de Salmone;
8 e, costeando-a com dificuldade, chegamos a um lugar chamado Bons Portos, perto do qual estava a cidade de Laséia.
9 Havendo decorrido muito tempo e tendo-se tornado perigosa a navegação, porque já havia passado o jejum, Paulo os advertia,
10 dizendo-lhes: Senhores, vejo que a viagem vai ser com avaria e muita perda não só para a carga e o navio, mas também para as nossas vidas.
11 Mas o centurião dava mais crédito ao piloto e ao dono do navio do que às coisas que Paulo dizia.
12 E não sendo o porto muito próprio para invernar, os mais deles foram de parecer que daí se fizessem ao mar para ver se de algum modo podiam chegar a Fênice, um porto de Creta que olha para o nordeste e para o sueste, para ali invernar.
13 Soprando brandamente o vento sul, e supondo eles terem alcançado o que desejavam, levantaram ferro e iam costeando Creta bem de perto.
14 Mas não muito depois desencadeou-se do lado da ilha um tufão de vento chamado euro-aquilão;
15 e, sendo arrebatado o navio e não podendo navegar contra o vento, cedemos à sua força e nos deixávamos levar.
16 Correndo a sota-vento de uma pequena ilha chamada Clauda, somente a custo pudemos segurar o batel,
17 o qual recolheram, usando então os meios disponíveis para cingir o navio; e, temendo que fossem lançados na Sirte, arriaram os aparelhos e se deixavam levar.
18 Como fôssemos violentamente açoitados pela tempestade, no dia seguinte começaram a alijar a carga ao mar.
19 E ao terceiro dia, com as próprias mãos lançaram os aparelhos do navio.
20 Não aparecendo por muitos dia nem sol nem estrelas, e sendo nós ainda batidos por grande tempestade, fugiu-nos afinal toda a esperança de sermos salvos.
21 Havendo eles estado muito tempo sem comer, Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Senhores, devíeis ter-me ouvido e não ter partido de Creta, para evitar esta avaria e perda.
22 E agora vos exorto a que tenhais bom ânimo, pois não se perderá vida alguma entre vós, mas somente o navio.
23 Porque esta noite me apareceu um anjo do Deus de quem eu sou e a quem sirvo,
24 dizendo: Não temas, Paulo, importa que compareças perante César, e eis que Deus te deu todos os que navegam contigo.
25 Portanto, senhores, tende bom ânimo; pois creio em Deus que há de suceder assim como me foi dito.
26 Contudo é necessário irmos dar em alguma ilha.
27 Quando chegou a décima quarta noite, sendo nós ainda impelidos pela tempestade no mar de Ádria, pela meia-noite, suspeitaram os marinheiros a proximidade de terra;
28 e lançando a sonda, acharam vinte braças; passando um pouco mais adiante, e tornando a lançar a sonda, acharam quinze braças.
29 Ora, temendo irmos dar em rochedos, lançaram da popa quatro âncoras, e esperaram ansiosos que amanhecesse.
30 Procurando, entrementes, os marinheiros fugir do navio, e tendo arriado o batel ao mar sob pretexto de irem lançar âncoras pela proa,
31 disse Paulo ao centurião e aos soldados: Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos.
32 Então os soldados cortaram os cabos do batel e o deixaram cair.
33 Enquanto amanhecia, Paulo rogava a todos que comessem alguma coisa, dizendo: É já hoje o décimo quarto dia que esperais e permaneceis em jejum, não havendo provado coisa alguma.
34 Rogo-vos, portanto, que comais alguma coisa, porque disso depende a vossa segurança; porque nem um cabelo cairá da cabeça de qualquer de vós.
35 E, havendo dito isto, tomou o pão, deu graças a Deus na presença de todos e, partindo-o começou a comer.
36 Então todos cobraram ânimo e se puseram também a comer.
37 Éramos ao todo no navio duzentas e setenta e seis almas.
38 Depois de saciados com a comida, começaram a aliviar o navio, alijando o trigo no mar.
39 Quando amanheceu, não reconheciam a terra; divisavam, porém, uma enseada com uma praia, e consultavam se poderiam nela encalhar o navio.
40 Soltando as âncoras, deixaram-nas no mar, largando ao mesmo tempo as amarras do leme; e, içando ao vento a vela da proa, dirigiram-se para a praia.
41 Dando, porém, num lugar onde duas correntes se encontravam, encalharam o navio; e a proa, encravando-se, ficou imóvel, mas a popa se desfazia com a força das ondas.
42 Então o parecer dos soldados era que matassem os presos para que nenhum deles fugisse, escapando a nado.
43 Mas o centurião, querendo salvar a Paulo, estorvou-lhes este intento; e mandou que os que pudessem nadar fossem os primeiros a lançar-se ao mar e alcançar a terra;
44 e que os demais se salvassem, uns em tábuas e outros em quaisquer destroços do navio. Assim chegaram todos à terra salvos.
Atos, capítulo 27, versículos 1 a 44