O comandante da guarnição romana em Jerusalém levou Paulo, prisioneiro, para enfrentar todo o Sinédrio, que era o tribunal superior dos judeus, e os chefes dos sacerdotes, a fim de apurar o que os judeus tinham contra Paulo para causar o grande distúrbio havido no templo.
Paulo chamou de “meus irmãos” os presentes, e começou declarando que havia sido conscientemente fiel a Deus toda a sua vida. Literalmente o que disse foi que tinha vivido como um cidadão da comunidade de Deus com boa consciência até aquele dia.
A palavra “consciência” implica conhecer os próprios pensamentos, e pode ser “boa” ou “má” quando confrontada com o conhecimento que a pessoa tem do bem e do mal. A consciência não é um guia infalível, e age de acordo apenas com a luz que tem (1 Coríntios 8:7, 8:10, 1 Pedro 2:19).
Em 1 Timóteo 1:13 Paulo reconheceu que havia sido blasfemador, perseguidor e injuriador, mas o fez por ignorância, na incredulidade, por isto Cristo Jesus o julgou fiel, e assim alcançou misericórdia. Paulo sempre agiu com a consciência pura para com Deus, seja no judaismo na sua ignorância e incredulidade, seja como servo de Cristo, que o julgou fiel e o pôs no Seu ministério.
Sua declaração foi um repúdio à acusação de ser um judeu renegado, um opositor da lei e do templo. Ele se dirigiu ao sinédrio de igual para igual, sem oferecer desculpas.
Ao ouvir o que Paulo dizia, Ananias mandou que os seus servos o ferissem na boca. Esse ato, cometido antes de ter havido julgamento, era ilegal e especialmente ofensivo a um judeu quando partia das mãos de outro judeu. Mas não era raro entre os judeus, tanto que o Senhor Jesus mandou “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra” (Lucas 6:29). Ele também sofreu uma bofetada de um dos guardas do sumo sacerdote, e o repreendeu por isso (João 18:22 e 23).
Ananias não se tornou sumo-sacerdote por direito de nascença, conforme determinava a lei de Moisés mas, segundo nos dizem os historiadores, herdara essa posição por ser filho de Nebedeno, nomeado sumo-sacerdote por Herodes, o rei que os romanos haviam escolhido para os judeus. Era portanto uma posição política, sendo Ananias um homem de mau caráter, destituido da santidade necessária para ocupar esse cargo no templo de Deus.
Logo após o primeiro concílio do Sinédrio em Jerusalém, Ananias fora afastado da posição de sumo-sacerdote e enviado a Roma para responder a processos de violência de que foi acusado. Em seu lugar foi nomeado um Jônatas, mas este foi assassinado por ordem do procurador romano Félix, e a posição permaneceu vaga até que o rei Agripa investiu outro homem da sua confiança, chamado Ismael, com o cargo. Foi neste intervalo que Paulo fora levado para julgamento, e Ananias assumiu a posição de presidente do Sinédrio.
Não sabemos se Paulo sabia disso, pois estivera ausente por muitos anos (capítulo 24:17), e talvez realmente não soubesse que Ananias se colocava como sumo-sacerdote provisório naquela reunião.
Em resposta à ofensa recebida, Paulo disse que Deus iria ferir Ananias, chamou-o de “parede branqueada” e repreendeu-o por desobedecer à lei mesmo quando estava ali na posição de juiz da lei. Alguns pensam que Paulo havia se descontrolado mas, conhecidos os fatos, vemos que disse a verdade e todos sabiam disso.
Submissos a Ananias, os que estavam ali repreenderam Paulo dizendo que estava injuriando o sumo sacerdote de Deus. Paulo, de pronto, respondeu que não sabia que era o sumo sacerdote (embora provavelmente estivesse usando os trajes do ofício e ocupando o seu lugar de proeminência), e acrescentou que sabia que a lei condenava injuriar os líderes do povo (Êxodo 22:28).
Prevendo que a opinião de todos iria se virar contra ele por causa da sua gafe, Paulo habilmente promoveu uma grande discórdia entre os seus inimigos. Uma parte deles eram saduceus que declaravam que não havia ressurreição de mortos, nem anjo, nem espírito enquanto os fariseus se apegavam às Escrituras e criam nesses fatos.
Paulo clamou bem alto que era fariseu (pois cria nas Escrituras) e era filho de fariseus (teria a solidariedade dos fariseus por ser do mesmo partido).
Acrescentou para todos ouvirem que estava sendo julgado por causa da esperança da ressurreição dos mortos. Isto era verdade também, pois a base da sua fé e do seu Evangelho foi precisamente a ressurreição do Senhor Jesus, que, depois de ressuscitado, o chamou. Foi isto que o convenceu que Jesus era realmente o Messias de Deus e a Sua ressurreição se tornou o centro da sua mensagem (1 Coríntios 15:13-20).
Tempos atrás os fariseus haviam se distanciado quando os saduceus perseguiram Pedro e os outros apóstolos porque pregavam a ressurreição de Jesus, e até mesmo Gamaliel aconselhou que nada fizessem contra eles (capítulo 5:34-39). Paulo sabia muito bem como os fariseus pensavam, e por isto julgou corretamente que iriam tomar o seu lado.
De fato, a multidão dos que ali estavam presentes se dividiu, e houve um grande clamor. Alguns dos fariseus se levantaram e declararam a inocência de Paulo, tomaram o seu lado e sugeriram que era possível mesmo que ele tivesse visto algum espírito ou anjo, em que os saduceus não acreditavam.
O comandante, provavelmente ainda mais confuso do que antes, vendo que Paulo estava no meio daqueles judeus irados e sujeito a sofrer agressão séria dentro daquele tumulto, mandou que os soldados descessem e o retirassem à força do meio deles, levando-o para a fortaleza.
O estado de ânimo de Paulo deveria estar muito baixo, pois parecia estar sozinho em frente a tantos inimigos. A aprovação dos fariseus tinha evitado danos maiores mas ele não podia confiar neles para a sua libertação. Não há qualquer menção de alguma mensagem ou visita da parte da igreja em Jerusalém.
Paulo estava ainda preso nas mãos dos soldados romanos e o comandante estava indeciso, não sabendo ainda se era culpado de algum crime. Em toda a sua experiência missionária até agora, Paulo nunca precisou mais do conforto e orientação do Senhor do que agora.
Mas o Senhor sabia de tudo, tanto o que se passara quanto o que ainda havia de acontecer. Paulo não havia ainda cumprido toda a sua missão, e as suas circunstâncias presentes faziam parte do caminho ao qual ele estava destinado.
Na noite seguinte o Senhor se apresentou a Paulo. Paulo era um dos homens mais capazes de que Ele dispunha para o Seu trabalho, e em toda crise o Senhor aparecia a ele (capítulo 18:9, 22:18).
Na última vez que vimos isto acontecer neste livro, o Senhor mandou que se apressase e saisse de Jerusalem, porque a sua mensagem não seria aceita ali (cap. 22:8). Desta vez o Senhor lhe disse que se animasse, porque como havia testemunhado em Jerusalém também importava que Paulo o fizesse em Roma.
Tem havido críticas por comentaristas ao comportamento e palavras de Paulo quando enfrentava aquele tribunal. Alguns o censuram por ter sido tão ofensivo ao sumo sacerdote, ou por usar de uma estratégia humana para provocar um conflito entre os saduceus e os fariseus.
No entanto, é de se notar que o Senhor não teve uma palavra sequer de repreensão ou de aconselhamento, ao contrário, Paulo recebeu a Sua aprovação, tanto que o Senhor lhe disse: “Como deste testemunho de Mim em Jerusalém, assim importa que o dês também em Roma”. Tal e qual! Que melhor aprovação poderia ser esta?
Em tudo Paulo mostrou coragem, sinceridade, fidelidade ao seu Senhor, e usou os seus manifestamente grandes talentos, conhecimento das Escrituras e preparo intelectual para promover a causa do Evangelho, mesmo com perigo da própria vida.
Foi sabendo do que ele era capaz que o Senhor o escolheu, como um que nasceu fora do tempo (1 Coríntios 15:8), para ser o apóstolo dos gentios e por fim Paulo escreveu com justiça: “sede meus imitadores” (1 Coríntios 4:16).
1 Fitando Paulo os olhos no sinédrio, disse: Varões irmãos, até o dia de hoje tenho andado diante de Deus com toda a boa consciência.
2 Mas o sumo sacerdote, Ananias, mandou aos que estavam junto dele que o ferissem na boca.
3 Então Paulo lhe disse: Deus te ferirá a ti, parede branqueada; tu estás aí sentado para julgar-me segundo a lei, e contra a lei mandas que eu seja ferido?
4 Os que estavam ali disseram: Injurias o sumo sacerdote de Deus?
5 Disse Paulo: Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote; porque está escrito: Não dirás mal do príncipe do teu povo.
6 Sabendo Paulo que uma parte era de saduceus e outra de fariseus, clamou no sinédrio: Varões irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseus; é por causa da esperança da ressurreição dos mortos que estou sendo julgado.
7 Ora, dizendo ele isto, surgiu dissensão entre os fariseus e saduceus; e a multidão se dividiu.
8 Porque os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito; mas os fariseus reconhecem uma e outra coisa.
9 Daí procedeu grande clamor; e levantando-se alguns da parte dos fariseus, altercavam, dizendo: Não achamos nenhum mal neste homem; e, quem sabe se lhe falou algum espírito ou anjo?
10 E avolumando-se a dissenção, o comandante, temendo que Paulo fosse por eles despedaçado, mandou que os soldados descessem e o tirassem do meio deles e o levassem para a fortaleza.
11 Na noite seguinte, apresentou-se-lhe o Senhor e disse: Tem bom ânimo: porque, como deste testemunho de mim em Jerusalém, assim importa que o dês também em Roma.
Atos, capítulo 23, versículos 1 a 11