Os acusadores do preso Paulo chegaram a Cesareia cinco dias depois dele, e se compunham da pessoa do sumo sacerdote, Ananias, e de alguns anciãos: não foi todo o sinédrio, nem parece ter ido algum dos conspiradores ou dos judeus asiáticos.
Como o sinédrio se dividiu, o presidente Ananias deve ter escolhido a dedo alguns anciãos saduceus para levar com ele, bem como o advogado romano Tértulo (Tertius). Este era necessário porque os judeus não estavam familiarizados com o procedimento legal romano e era o costume nas províncias usar advogados romanos. Provavelmente foi usado o idioma latim nesta audiência.
Tértulo começou com lisonjas, para tentar entrar nas boas graças do governador. Félix tinha suprimido uma revolta, mas o historiador Tácito declara que Félix secretamente estimulava bandidos e compartilhava da pilhagem pela qual os judeus reclamaram finalmente ao imperador Nero que por isso tirou-lhe o cargo e o chamou de volta a Roma. Mas soava bem elogiar Félix por manter a paz na sua província, especialmente porque Tértulo ia acusar Paulo de ser um perturbador da paz.
O advogado pediu que Félix o ouvisse por um momento, segundo a sua equidade, pois não queria detê-lo muito. Na realidade, vemos pela acusação que fizeram, que nada havia de concreto em sua acusação, e como não havia fatos definidos, comprováveis, o advogado preparou-se para apresentar o que tinha para dizer como se fosse apenas uma síntese das acusações contra Paulo.
Iniciou a acusação dizendo que tinham verificado que Paulo era uma praga (o maior pregador de todos os tempos foi assim considerado por um advogado obscuro contratado pelos judeus!), e promotor de sedições entre os judeus pelo mundo todo (realmente foi um grande homem, naquele tempo e até hoje, mas por motivos dos mais nobres, e as sedições em que esteve envolvido foram promovidas pelos judeus, sendo ele o alvo dos seus ataques). Promover uma insurreição era um crime contra direito romano quando pudesse ser comprovado. Foram os judeus que conspiraram contra Paulo em Damasco e em Jerusalém, o expulsaram de Antioquia da Pisídia, o apedrejaram em Listra, causaram com que fosse açoitado em Filipos, acusado de traição em Tessalônica, acusado injustamente diante do procônsul em Corinto, causaram um grave tumulto em Éfeso, e agora causaram o distúrbio em Jerusalém. Poderiam ter apresentado provas plausíveis, mas não o fizeram.
Tértulo passou a fazer outras acusações nas quais um tribunal romano não teria qualquer interesse, ou seja, sua posição de chefe de uma seita que julgavam ser judia e a profanação do templo judeu, ambas inteiramente falsas: os cristãos não tinham um chefe, mas a cabeça das igrejas era Cristo, e isto era o que Paulo ensinava; não houve qualquer profanação do templo ou tentativa de fazê-lo, apenas uma acusação sem base dos judeus da Ásia.
Terminou dizendo que, quando eles (incluindo Tértulo?) prenderam Paulo para que fosse julgado segundo as suas leis, o comandante Lísias o tirou das suas mãos com grande violência, mandando aos acusadores que viessem até Félix. Tudo mentira, porque foi o povo que havia agarrado Paulo e, arrastando-o para fora do templo procurava mata-lo (cap. 21:28-31). Nada disse sobre as tentativas que Lísias fez de descobrir o motivo do tumulto, convocando o sinédrio duas vezes e levando Paulo com ele para ver se havia alguma base legal, mas não lhe deram nenhuma.
Sugeriu, por fim, que o próprio Félix inquirisse Paulo porque assim poderia certificar-se de tudo do que o acusavam. Os judeus confirmaram a acusação, garantindo que as afirmativas eram verdadeiras e assim quebrando o nono mandamento da lei de Moisés “não darás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20:16).
Félix então deu a palavra a Paulo, e este começou a sua defesa sem lisonjear Félix como havia feito Tértulo, limitando-se apenas ao que podia dizer de bom sobre ele: que se animava em defender-se em sua presença por causa dos muitos anos de experiência que Félix tinha como juiz dos judeus (sete anos).
Forneceu então fatos concretos que Félix poderia verificar facilmente, se quisesse:
Assim Paulo negou as duas acusações que eram graves e a única que era regida pelo direito romano (insurreição). Demonstrou que as acusações pronunciadas por Tértulo eram simples afirmações pois não foram apresentadas e nem podiam apresentar provas concretas. Sem contratar advogado, Paulo defendeu seu direito à liberdade com perícia.
Voltando-se então à alegação deles de que seria “chefe da seita dos nazarenos”, Paulo aproveita para brevemente dar um esclarecimento sobre a sua posição diante das Escrituras dos judeus, sua consciência limpa diante de Deus e dos homens (Ananias havia se tornado violento quando Paulo primeiro fez esta declaração – capítulo 23:2), o motivo caritativo e piedoso que o trouxera a Jerusalém e a correção da sua conduta no templo.
Deste argumento é de se concluir que o “caminho” que eles chamavam de “seita” nada mais era do que o verdadeiro judaísmo, não um desvio ou “seita” que saiu dele, mas o seu cumprimento (como ele prova em Gálatas 3 e Romanos 9).
Paulo não contorceu a realidade, mas confirmou o que havia dito diante do sinédrio, que era um fariseu espiritual no sentido mais puro (capítulo 23:6). Asseverou que cria em toda a lei e nos profetas, mantendo firme a sua esperança do Messias e, talvez num gesto de cortesia para com os seus acusadores, ele não os tratou como saduceus, mas como se compartilhassem da sua esperança da ressurreição dos justos como dos injustos. Os judeus da Ásia o encontraram já santificado no templo (fez os sacrifícios – capítulo 21:27) e nada podiam provar do que o acusavam.
Neste ponto Félix deu por encerrada a sessão. Ele conhecia muito mais a respeito do “Caminho” do que aqueles judeus pensavam. O original grego se traduz melhor como “sabendo com mais precisão”. Não sabemos como adquiriu este conhecimento, mas Filipe o Evangelista também morava em Cesareia, e havia ali uma igreja. Drusila, mulher de Félix, era judia e podia também ter lhe dado algumas informações. Além disso, é bem possível que Félix tenha tido conhecimento da decisão de Gálio em Corinto, que o cristianismo era religião lícita como uma forma de judaísmo (capítulo 18:12-17).
Sendo um governador romano, Félix percebeu muito bem que o sinédrio, com a ajuda de Tértulo, não tinha fornecido qualquer base legal para a sua acusação, portanto Paulo poderia ser declarado sem culpa e libertado imediatamente.
Mas não via vantagem para si em soltar Paulo, e ainda arriscava o desagrado dos judeus – uma situação semelhante à de Pilatos, que sabia que Jesus era inocente, mas tinha medo dos judeus.
Decidiu adiar a decisão sob um pretexto plausível, que ele precisava da presença pessoal de Lísias, que não era o caso. Lísias já tinha escrito que considerava que Paulo era inocente e dificilmente seria chamado para vir até Cesareia para algo assim.
Félix abrandou as condições do aprisionamento de Paulo, e poucos dias depois chamou Paulo para ter uma entrevista com ele e Drusila (filha do infame Herodes Agripa I que assassinara o apóstolo Tiago). Paulo lhes pregou o Evangelho, Félix se apavorou e terminou a entrevista quando Paulo falava da justiça (que não praticavam), do domínio próprio (que não tinham) e do juízo vindouro (onde seriam réus).
Félix conversou mais vezes com Paulo, esperando que Paulo lhe desse dinheiro, pois estava acostumado a ser subornado. Depois de dois anos foi substituído por Pórcio Festo, deixando Paulo preso para agradar os judeus.
1 Cinco dias depois o sumo sacerdote Ananias desceu com alguns anciãos e um certo Tertulo, orador, os quais fizeram, perante o governador, queixa contra Paulo.
2 Sendo este chamado, Tertulo começou a acusá-lo, dizendo: Visto que por ti gozamos de muita paz e por tua providência são continuamente feitas reformas nesta nação,
3 em tudo e em todo lugar reconhecemo-lo com toda a gratidão, ó excelentíssimo Félix.
4 Mas, para que não te detenha muito rogo-te que, conforme a tua eqüidade, nos ouças por um momento.
5 Temos achado que este homem é uma peste, e promotor de sedições entre todos os judeus, por todo o mundo, e chefe da seita dos nazarenos;
6 o qual tentou profanar o templo; e nós o prendemos, [e conforme a nossa lei o quisemos julgar.
7 Mas sobrevindo o comandante Lísias no-lo tirou dentre as mãos com grande violência, mandando aos acusadores que viessem a ti.]
8 e tu mesmo, examinando-o, poderás certificar-te de tudo aquilo de que nós o acusamos.
9 Os judeus também concordam na acusação, afirmando que estas coisas eram assim.
10 Paulo, tendo-lhe o governador feito sinal que falasse, respondeu: Porquanto sei que há muitos anos és juiz sobre esta nação, com bom ânimo faço a minha defesa,
11 pois bem podes verificar que não há mais de doze dias subi a Jerusalém para adorar,
12 e que não me acharam no templo discutindo com alguém nem amotinando o povo, quer nas sinagogas quer na cidade.
13 Nem te podem provar as coisas de que agora me acusam.
14 Mas confesso-te isto: que, seguindo o caminho a que eles chamam seita, assim sirvo ao Deus de nossos pais, crendo tudo quanto está escrito na lei e nos profetas,
15 tendo esperança em Deus, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição tanto dos justos como dos injustos.
16 Por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensas diante de Deus e dos homens.
17 Vários anos depois vim trazer à minha nação esmolas e fazer oferendas;
18 e ocupado nestas coisas me acharam já santificado no templo não em ajuntamento, nem com tumulto, alguns judeus da Ásia,
19 os quais deviam comparecer diante de ti e acusar-me se tivessem alguma coisa contra mim;
20 ou estes mesmos digam que iniquidade acharam, quando compareci perante o sinédrio,
21 a não ser acerca desta única palavra que, estando no meio deles, bradei: Por causa da ressurreição dos mortos é que hoje estou sendo julgado por vós.
22 Félix, porém, que era bem informado a respeito do Caminho, adiou a questão, dizendo: Quando o comandante Lísias tiver descido, então tomarei inteiro conhecimento da vossa causa.
23 E ordenou ao centurião que Paulo ficasse detido, mas fosse tratado com brandura e que a nenhum dos seus proibisse servi-lo.
Act 24:24 Alguns dias depois, vindo Félix com sua mulher Drusila, que era judia, mandou chamar a Paulo, e ouviu-o acerca da fé em Cristo Jesus.
Act 24:25 E discorrendo ele sobre a justiça, o domínio próprio e o juízo vindouro, Félix ficou atemorizado e respondeu: Por ora vai-te, e quando tiver ocasião favorável, eu te chamarei.
Act 24:26 Esperava ao mesmo tempo que Paulo lhe desse dinheiro, pelo que o mandava chamar mais freqüentemente e conversava com ele.
Act 24:27 Mas passados dois anos, teve Félix por sucessor a Pórcio Festo; e querendo Félix agradar aos judeus, deixou a Paulo preso.
Atos, capítulo 24