Os judeus que odiavam Paulo tramaram uma conspiração e juraram solenemente que não comeriam nem beberiam enquanto não matassem Paulo. Essa espécie de voto abominável não era incomum entre os judeus que, segundo suas tradições pervertidas, lhes davam direito de castigar sem qualquer processo legal aqueles que consideravam ser transgressores da lei, inclusive de matar o judeu que tivesse abandonado a lei de Moisés.
Não titubearam em contar aos principais sacerdotes e anciãos (que compunham o sinédrio) o que faziam e de exigir o apoio e a conivência deles para cometer o assassínio de Paulo. Como a maioria era da seita dos saduceus, e inimigos ferrenhos de Paulo e do Evangelho, não encontramos registrada qualquer oposição da parte deles. Julgavam estar prestando um serviço a Deus (João 16:2).
Na realidade, eles não corriam perigo de morrer de fome ou sede, porque esses votos eram tão facilmente cancelados como feitos: qualquer dos seus “sábios” ou rabinos podia libertá-los do seu compromisso, segundo o Talmude (um dos livros básicos da religião judaica, contendo a lei oral, a doutrina, a moral e as tradições dos judeus).
Como o comandante tinha anteriormente reunido o sinédrio para ouvir as suas acusações contra Paulo, esses homens pensavam que não teria objeções em apresentá-lo outra vez, apesar do conflito que tinham tido entre si naquela ocasião. E no caminho, sendo muitos, matariam Paulo.
Não temos mais informações sobre o sobrinho de Paulo aqui mencionado. De alguma forma ele teve conhecimento da conspiração e foi até a fortaleza contar tudo a Paulo, que logo chamou um dos centuriões e mandou que levasse o rapaz ao comandante porque tinha algo para lhe dizer. Paulo era respeitado por causa da sua cidadania romana.
Afinal o Senhor já lhe dissera que iria até Roma. Mas vemos que Paulo usou os privilégios da cidadania romana de que dispunha.
Teria sido mais fácil para Paulo dizer ao seu sobrinho: “obrigado por me contar as notícias, mas estou confiando em Deus, assim você pode voltar." Obviamente Deus nos provê meios como estes e espera que os usemos. Não significa de forma alguma que não confiamos n’Ele. Ao contrário, confiamos que Deus usará nossos métodos e meios para realizar os Seus propósitos.
O comandante mostrou-se amável, levando o rapaz pela mão à parte, onde não podiam ser ouvidos, e prestou atenção a tudo o que ele tinha a dizer sobre a trama, bem como a recomendação que lhe deu para não se deixar convencer pela comissão dos judeus que viria vê-lo no dia seguinte.
Assim informado, o comandante despediu o rapaz ordenando que não dissesse a ninguém que lhe havia contado aquilo e imediatamente providenciou a transferência de Paulo para Cesareia às 9 horas daquela mesma noite.
Se os judeus pudessem levar a cabo a sua intenção de matar Paulo, o comandante estaria em maus lençóis para explicar aos seus superiores como um cidadão romano podia ser assassinado enquanto estava sob sua custódia – teria que responder perante um tribunal.
É talvez surpreendente a força armada que o comandante reuniu para levar o seu prisioneiro: dois centuriões com os duzentos legionários fortemente armados que comandavam, setenta cavaleiros da sua legião e ainda duzentos lanceiros, que eram tropas suplementares levando uma lança em suas mãos direitas.
Era uma força destinada a repelir qualquer ataque dos quarenta judeus se tivessem a audácia de atacá-los em sua viagem. A precaução extrema de Lísias é explicada em alguns manuscritos latinos como sendo devida ao medo de um ataque noturno, resultando na possibilidade de ser acusado de suborno diante de Félix.
Ordenou também que tivessem montarias para o uso de Paulo, que serviriam para uso alternado (pois a distância era de mais de 120 quilômetros), para carregar bagagem e para o uso de um acompanhante (que seria Lucas).
Acontece que o comandante era responsável pela ordem e segurança da província, enquanto que o procurador romano tinha autoridade no âmbito legal. Paulo estava preso por uma questão legal e por isto devia ser julgado por Félix, que era a maior autoridade na região, representando o próprio imperador romano.
Félix era irmão de Palas, um notório favorito do imperador Cláudio. Ambos eram escravos libertos e Félix foi nomeado procurador da Judeia por esse imperador em 52 a. D. Ocupou o cargo até ser substituído por Festo devido a queixas feitas a Nero pelos judeus contra ele.
Félix se casara com Drusila, filha de Herodes Agripa, com a esperança de agradar os judeus. Era um dos homens mais depravados do seu tempo. O historiador Tácito conta da sua “crueldade e cobiça com que exerceu o poder de um rei com o espírito de um escravo”. O termo “governador “ significa “líder” e era usado para líderes de todos os tipos (imperadores, reis, procuradores). No Novo Testamento é usado para Pilatos (Mateus 27:2), Félix, (Atos 23:24,26,33; 24:1), e para Festo (Atos 26:30).
Cláudio Lísias não foi com eles, mas enviou uma carta a Félix em Cesareia., e aqui temos uma transcrição dela, provavelmente em sua integridade, mesmo porque teria sido toda lida no tribunal aberto diante de Félix, e Lucas provavelmente estaria com Paulo. A lei romana requeria que uma autoridade subordinada como Lísias mandasse uma declaração escrita do caso à autoridade superior com todos os detalhes (chamada “elogium”). Uma cópia da carta pode ter sido dada a Paulo depois do seu apelo a César, provavelmente escrita em latim.
A carta é uma cuidadosa mistura da verdade e falsidade com o selo de autenticidade. Põe as coisas em uma luz favorável para Lísias, sem qualquer menção da ordem que deu para açoitar Paulo.
Nela o comandante explicou que a sua investigação provou que Paulo era inocente de qualquer crime que merecesse morte ou prisão. O tumulto na verdade fora causado por questões acerca das leis dos judeus. Por causa da cilada que estava sendo preparada contra ele, achou aconselhável mandar Paulo até Cesareia para que seus acusadores fossem até lá também para apresentar a sua acusação diante do governador.
Durante a noite esse pequeno exército percorreu os sessenta quilômetros até a cidade de Antipátride, uma distância considerável para os soldados que marchavam a pé. Sem ter havido qualquer ocorrência desfavorável, e agora já fora de perigo dos judeus, os soldados deixaram a cavalaria com Paulo, e voltaram para Jerusalém.
A cavalaria prosseguiu até Cesareia, deu a carta ao governador e lhe entregou Paulo. Cumpriu-se assim, perfeita e rapidamente, a profecia de Ágabo, feita naquele mesmo lugar quando, a caminho de Jerusalém, ficaram por uns dias na casa de Filipe (capítulo 21:8-11).
Félix leu a carta e perguntou a Paulo de que província era ele. Isso ele precisava saber para verificar se era senatória ou imperial, porque, conforme o caso, não estaria sob sua jurisdição. A Cilícia estava na Síria, que tinha seu próprio administrador, e se o caso de Paulo fosse de insurreição, ele deveria ser julgado pela autoridade de lá. Mas, por enquanto, como fora preso em Jerusalém e não era por insurreição, o julgamento teria que ser feito por Félix.
Ele adiou o julgamento até que viessem os seus acusadores de Jerusalém, e pôs Paulo sob custódia “no pretório de Herodes”. A palavra grega é “praito¯rio¯i” que pode designar o quartel de um general, ou o palácio do governador, que é o caso aqui. Havia acomodações próprias para os presos nestes lugares.
12 Quando já era dia, coligaram-se os judeus e juraram sob pena de maldição que não comeriam nem beberiam enquanto não matassem a Paulo.
13 Eram mais de quarenta os que fizeram esta conjuração;
14 e estes foram ter com os principais sacerdotes e anciãos, e disseram: Conjuramo-nos sob pena de maldição a não provarmos coisa alguma até que matemos a Paulo.
15 Agora, pois, vós, com o sinédrio, rogai ao comandante que o mande descer perante vós como se houvésseis de examinar com mais precisão a sua causa; e nós estamos prontos para matá-lo antes que ele chegue.
16 Mas o filho da irmã de Paulo tendo sabido da cilada, foi, entrou na fortaleza e avisou a Paulo.
17 Chamando Paulo um dos centuriões, disse: Leva este moço ao comandante, porque tem alguma coisa que lhe comunicar.
18 Tomando-o ele, pois, levou-o ao comandante e disse: O preso Paulo, chamando-me, pediu-me que trouxesse à tua presença este moço, que tem alguma coisa a dizer-te.
19 O comandante tomou-o pela mão e, retirando-se à parte, perguntou-lhe em particular: Que é que tens a contar-me?
20 Disse ele: Os judeus combinaram rogar-te que amanhã mandes Paulo descer ao sinédrio, como que tendo de inquirir com mais precisão algo a seu respeito;
21 tu, pois, não te deixes persuadir por eles; porque mais de quarenta homens dentre eles armaram ciladas, os quais juraram sob pena de maldição não comerem nem beberem até que o tenham morto; e agora estão aprestados, esperando a tua promessa.
22 Então o comandante despediu o moço, ordenando-lhe que a ninguém dissesse que lhe havia contado aquilo.
23 Chamando dois centuriões, disse: Aprontai para a terceira hora da noite duzentos soldados de infantaria, setenta de cavalaria e duzentos lanceiros para irem até Cesaréia;
24 e mandou que aparelhassem cavalgaduras para que Paulo montasse, a fim de o levarem salvo ao governador Félix.
25 E escreveu-lhe uma carta nestes termos:
26 Cláudio Lísias, ao excelentíssimo governador Félix, saúde.
27 Este homem foi preso pelos judeus, e estava a ponto de ser morto por eles quando eu sobrevim com a tropa e o livrei ao saber que era romano.
28 Querendo saber a causa por que o acusavam, levei-o ao sinédrio deles;
29 e achei que era acusado de questões da lei deles, mas que nenhum crime havia nele digno de morte ou prisão.
30 E quando fui informado que haveria uma cilada contra o homem, logo to enviei, intimando também aos acusadores que perante ti se manifestem contra ele. [Passa bem.]
31 Os soldados, pois, conforme lhes fora mandado, tomando a Paulo, o levaram de noite a Antipátride.
32 Mas no dia seguinte, deixando aos de cavalaria irem com ele, voltaram à fortaleza;
33 os quais, logo que chegaram a Cesaréia e entregaram a carta ao governador, apresentaram-lhe também Paulo.
34 Tendo lido a carta, o governador perguntou de que província ele era; e, sabendo que era da Cilícia,
35 disse: Ouvir-te-ei quando chegarem também os teus acusadores; e mandou que fosse guardado no pretório de Herodes.
Atos, capítulo 23 versículos 12 a 35