Paulo se dirige aqui ao judeu, com grande habilidade e ironia:
O judeu orgulha-se de ser chamado assim: indica nacionalidade, em contraste com “grego” como chamava todos os gentios. “Hebreu” realça mais o seu idioma. Ele pertence ao povo de Deus na terra.
Repousa na lei: ou descansa na lei, figura da confiança cega e automática na lei mosaica. Mas a lei lhe foi dada, não para tranquilidade de consciência, mas para revelar o seu pecado e conduzi-lo a Cristo (Gálatas 3:24).
Orgulha-se em Deus: envaidecido, considera Deus como sendo uma prerrogativa particular e propriedade nacional dos judeus, pois Deus havia feito um pacto especial com o seu povo (Êxodo 2:24).
Conhece a vontade de Deus: assim pensava, pois a vontade de Deus é delineada nas Escrituras.
Aprova as coisas superiores, porque está instruído na lei: verificava as opções, e decidia a melhor devido à instrução na lei que recebia na sinagoga (Filipenses 1:10). A lei distingue os valores morais superiores.
guia dos cegos: era propósito de Deus que os judeus fossem guias dos gentios, pois “a salvação vem dos judeus” (João 4:22).
luz dos que se encontram nas trevas: contudo esse objetivo que lhes foi dado resultou em presumida arrogância da sua parte.
instrutor de ignorantes e mestre de crianças, porque considera que a lei incorpora a sabedoria e a verdade: “instrutor” no original também implica corrigir e disciplinar; “ignorantes” é uma palavra de desprezo para os gentios, mas é a perspectiva do judeu que despreza os gentios (e em troca era desprezado também por eles). As “crianças” são os prosélitos do judaísmo que o judeu não considerava como emancipados.
No entanto, o orgulhoso judeu, que se ufana de todas estas coisas, e se faz professor dos “ignorantes” gentios, não se ensina a si próprio. Tudo não passa de orgulho nacional, de religião e conhecimento sem obediência. O seu comportamento não se conforma com o que diz e ensina, e embora tenha aprendido quais são os padrões de conduta requeridos por Deus, ele não os mantem em sua conduta.
Temos em seguida uma série de exemplos desse comportamento desregrado do judeu:
Furta (8º mandamento).
Adultera (7º mandamento). O talmude registra que os três mais ilustres rabinos eram culpados do crime de adultério.
Rouba os templos, talvez saqueando as imagens (3º mandamento). O escrivão de Éfeso declarou que Paulo e seus companheiros, embora fossem judeus, não eram “sacrílegos nem roubadores da sua deusa” (Atos 19:37), indicando que essa acusação era às vezes feita contra os judeus, embora fossem proibidos de fazer tal coisa.
Transgride a lei, desonrando a Deus ao quebrar os seus preceitos e fazendo com que o nome de Deus seja blasfemado entre os gentios (Isaías 52:5). O nome de Deus (Jeová, ou Javé), era considerado tão sagrado pelos judeus, que nunca era pronunciado salvo pelo sumo sacerdote no Dia da Expiação (Yom Kippur) ao entrar no Lugar Santíssimo do templo. Sempre que esse nome aparecia nas Escrituras eles liam “Adonai” (Senhor), assim interpretando Levítico 24:16. Embora o judeu respeitasse dessa forma o Nome de Deus, o seu desregramento provocava o gentio a blasfemar, usando-o desrespeitosamente.
A marca física da circuncisão, com a qual o judeu se identifica como descendente e herdeiro de Abraão, foi apenas o selo do pacto existente entre ele e Deus (Gênesis 17:4,5). Ela é proveitosa para o judeu para lembrá-lo do seu relacionamento e da sua responsabilidade perante Deus, de guardar a Sua lei e os Seus estatutos, decorrente desse pacto.
Mas ao ser transgressor da lei, o judeu está recusando fazer a sua parte do pacto, logo a circuncisão não tem valor para ele e torna-se em incircuncisão, ou seja, é nula como se fosse inexistente (logo não pode mais gabar-se dela).
Por outro lado, se um gentio (a incircuncisão) aderir à moralidade prescrita pela lei, mesmo não estando sob a lei, a sua incircuncisão é mais aceitável do que a circuncisão de um judeu transgressor. Em tal caso é o coração do gentio que foi circuncidado, e é isso que interessa.
O comportamento superior do gentio condena o judeu circunciso, que, com a sua lei e estatutos escritos não os obedece nem vive uma vida de separação e santificação à altura da sua circuncisão.
Aos olhos de Deus, um judeu verdadeiro não é apenas um homem que é descendente da linha de Abraão, Isaque e Jacó, e que tem em seu corpo a marca da circuncisão. Um judeu pode ter tudo isso e ainda ser uma negação moralmente. O Senhor não se deixa levar por considerações externas superficiais de raça ou religião; ele olha para a sinceridade e pureza no íntimo de cada pessoa.
Para ser um verdadeiro judeu, ele o deve ser também de coração, santificado em seu espírito e não só na letra. Esse tipo de judeu que também o é em seu interior, que vive à altura do pacto existente com Deus, é o nível alto que Paulo coloca diante do judeu por nacionalidade apenas descrito acima.
Esta passagem não ensina que todos os crentes são judeus, ou que a igreja é o Israel de Deus. Paulo está tratando daqueles que são judeus por nascimento e foram criados no judaísmo. O seu ensino aqui é que não basta serem judeus circuncidados fisicamente mas devem se consagrar a Deus em seus corações, a fim de gozarem dos benefícios das bênçãos que herdam mediante o pacto feito com Deus pelos seus patriarcas. Esta é a cirurgia do coração.
Este é que receberá o louvor de Deus, imensamente superior ao que vem dos homens. Aqui se encontra um jogo de palavras: “judeu” vem de Judá, o reino remanescente do povo israelita depois da dispersão das outras tribos de Israel e Judá, e significa “louvor”; portanto, um verdadeiro “louvor” é aquele cujo caráter é de tal ordem que recebe o louvor de Deus.
Para o judeu que está lendo este ensino, vemos a seguir as respostas a algumas questões que lhe terão ocorrido:
“Que vantagem há em ser um judeu circuncidado?” Os judeus foram muito privilegiados, inclusive porque a Palavra de Deus lhes foi confiada para escrever e conservar. Infelizmente, de maneira geral, demonstraram uma consternante falta de fé.
“Sendo assim, Deus voltará atrás em suas promessas ao povo e anulará os pactos feitos com Israel, devido à sua incredulidade?” Nunca! Mesmo que todo homem seja mentiroso, Deus continua verdadeiro (Salmo 51:6).
“Se a justiça de Deus é provada pela nossa injustiça, do ponto de vista humano não é Deus injusto ao nos castigar com ira por nossa injustiça?” Ao contrário, isso seria uma injustiça, e se Deus a fizesse, não teria depois condições para julgar a injustiça do mundo.
“Mas se a mentira resultou na glória de Deus por revelar a Sua verdade, porque sou julgado como pecador?” Isso é dizer “façamos o mal para que venha o bem”, ou seja, que os fins justificam os meios. Alguns caluniosamente afirmavam que Paulo dizia isto, decerto porque ele pregava a justificação pela fé e não pelas obras. Esta acusação é feita ainda hoje, com frequência, contra o Evangelho da graça mediante a fé somente em Jesus Cristo, dizendo: “se somos salvos pela fé somente, podemos continuar vivendo em pecado, para realçar a graça de Deus”. Este argumento é combatido vigorosamente no capítulo 6.
17 Eis que tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus;
18 e sabes a sua vontade, e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído por lei;
19 e confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas,
20 instruidor dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na lei;
21 tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas?
22 Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio?
23 Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?
24 Porque, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós.
25 Porque a circuncisão é, na verdade, proveitosa, se tu guardares a lei; mas, se tu és transgressor da lei, a tua circuncisão se torna em incircuncisão.
26 Se, pois, a incircuncisão guardar os preceitos da lei, porventura, a incircuncisão não será reputada como circuncisão?
27 E a incircuncisão que por natureza o é, se cumpre a lei, não te julgará, porventura, a ti, que pela letra e circuncisão és transgressor da lei?
28 Porque não é judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne.
29 Mas é judeu o que o é no interior, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não na letra, cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus.
1 ¶ Qual é, logo, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?
2 Muita, em toda maneira, porque, primeiramente, as palavras de Deus lhe foram confiadas.
3 Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus?
4 De maneira nenhuma! Sempre seja Deus verdadeiro, e todo homem mentiroso, como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras e venças quando fores julgado.
5 E, se a nossa injustiça for causa da justiça de Deus, que diremos? Porventura, será Deus injusto, trazendo ira sobre nós? (Falo como homem.)
6 De maneira nenhuma! Doutro modo, como julgará Deus o mundo?
7 Mas, se pela minha mentira abundou mais a verdade de Deus para glória sua, por que sou eu ainda julgado também como pecador?
8 E por que não dizemos (como somos blasfemados, e como alguns dizem que dizemos): Façamos males, para que venham bens? A condenação desses é justa.
Romanos 2:17 a 3:8